A necessidade da religião no espaço público

Sou católico. Apenas isso não me define por completo, mas é parte importante daquilo que sou, apesar das regras da sociedade quererem esconder essa parte de mim. Pelo contrário, defendo que a religião merece estar mais presente no espaço público, seja através de procissões, da comunicação social, de debates, de manifestações livres de religiosidade (quer individuais, quer de grupo) e até no discurso político. Há quem queira (seja por ideologia, convicção, medo ou vergonha) acantonar a religião aos espaços que existem para o efeito, como as igrejas e suas sacristias, expulsando os religiosos das escolas, hospitais e outras instituições que fundaram ao longo do tempo, substituindo-os sucessivamente e eliminando qualquer rasto que da sua passagem tivesse porventura ficado. Eu quero mostrar que uma presença maior da religião no espaço público é não só boa como necessária para a liberdade de todos, incluindo a dos que não crêem.

Imperador Constantino num mosaico
da Basílica de Santa Sofia em Istanbul
(antiga Constantinopla)
Ao longo da História, os vários regimes absolutos, totalitários e ditaduras musculadas não conviveram pacificamente com as religiões e igrejas do território. Se pensarmos no Império Romano dos primeiros séculos depois de Cristo, no reinado de Henrique VIII em Inglaterra, na Alemanha Nazi ou na União Soviética e respectivos satélites comunistas, por exemplo, vemos como a relação do Estado com a religião foi de tal modo conflituosa que este perseguiu-a, modificou-a, substituiu-a ou aboliu-a. Noutros casos, como no Império Romano de Constantino, nos vários Reinos Cristãos da era medieval ou nos Califados Islâmicos, foi política então que determinada religião ou igreja se tornasse na oficial do Estado. E se é verdade que muitos dos países de maioria muçulmana são "repúblicas islâmicas" ou outro tipo de teocracias onde sharia é a lei aplicada, os Estados Papais já não existem desde a unificação de Itália em 1870. Como bem notava Alexis de Tocqueville uns 40 anos antes a propósito da sua viagem à América, "a religião não pode partilhar a força material com os governantes sem chamar a si uma parte dos ódios que eles suscitam". Com efeito, ao se ver liberta das responsabilidades do poder temporal, a Igreja Católica pôde dedicar-se única e exclusivamente (e com redobrada credibilidade) à sua missão espiritual de dar Jesus Cristo a conhecer a todas as gentes, para salvação das suas almas e para maior glória de Deus...

Fachada do bloco central do Parlamento Canadiano
Numa intervenção pública que fiz no Parlamento do Canadá em Otava há cerca de 4 anos atrás, diante de vários deputados e representantes das diversas religiões, pude sublinhar o papel da religião na defesa das liberdades, como a de pensamento e a de expressão. De facto, é distinta a natureza dos discursos político e religioso: enquanto que o político está primeiramente preocupado com a conquista e manutenção do poder, o religioso busca antes de nada alcançar a verdade das coisas. Por esta razão, a propaganda e práctica política de regimes mais autoritários tende a conviver mal com o discurso religioso, a liberdade religiosa e tudo o mais que seja da esfera da religião. Assim, defender a liberdade religiosa e a existência livre da religião no espaço público são a melhor garantia de que as liberdades de pensamento, de imprensa, de associação e de expressão não serão postas em causa. Deste modo, o poder político encontra contra-pesos dissuasores para que não degenere em tirania.

Sente-se, além do mais, a falta do discurso religioso numa sociedade cada vez mais atomizada, egoísta, só, utilitarista, gananciosa, promíscua, sem vínculos duradouros nem honra, relativista, pornográfica, violenta... numa palavra: desmoralizada. Alexis de Tocqueville, que acima já foi citado, notou que as instituições democráticas nos Estados Unidos da América encontram na religião a fonte divina dos seus direitos, a salvaguarda dos costumes e a garantia da durabilidade das leis:

Alexis de Tocqueville (1805-1859) foi o autor
de "Da Democracia na América" (1835-40)
"Não existe nenhuma [religião] que não coloque o objecto dos desejos do homem para além e acima dos bens terrestres e que não eleve naturalmente a sua alma a regiões muito superiores às dos sentidos. Também não existe nenhuma religião que não imponha a cada indivíduo certos deveres para com a espécie humana, ou comuns a ela, e que não obrigue, dessa forma, a sair da contemplação exclusiva de si próprio. E esta é uma característica até das religiões mais falsas e perigosas." - Alexis de Tocqueville, in "Da Democracia na América", pág. 509, Principia, 2001, Cascais.

É necessário, portanto, proteger a religião no espaço público. Tal não se faz certamente com a ridícula mas grave investigação que a Universidade de Edimburgo, na Escócia, abriu contra uma aluna de 21 anos por alegada "islamofobia" e "discurso de ódio" depois de ela ter gozado com o ISIS no seu mural do facebook - imagine-se que por zombar dos selvagens do Estado Islâmico em privado se pode ofender toda uma pobre comunidade de vítimas... é de loucos!

A religião - em especial aquela que é marca da nossa civilização e que dá "a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" - protege-se ao lhe criarmos condições para se expressar livremente no espaço público. Se possível, acarinhamos a referência moral das religiões e reconhecemos a utilidade pública das suas instituições que, a par das outras associações voluntárias, das famílias e da vizinhança, formam os "pequenos pelotões" que Edmund Burke identificou em 1790 (Reflections on the Revolution in France) e que são a sociedade civil que Peter L. Berger e Richard John Neuhaus quiseram promover em 1977 (To Empower People - From State to Civil Society).

Jacob Rees-Mogg a beber chá
Mal seria de nós se a César devêssemos dar tudo o que está fora das igrejas e suas sacristias, como se Deus merecesse estar confinado apenas a esses locais ou como se César e Deus - a política e a religião - fossem duas realidades estanques que não podem coexistir na mesma conversa. Falemos de Jacob Rees-Mogg, que é um deputado inglês à Câmara dos Comuns em Westminster, do Partido Conservador, e é uma pessoa cuja actuação tenho seguido com interesse ao longo dos últimos meses. Trata-se de um político notável, backbencher com bons princípios e coerente, gentleman com bom humor e bom aspecto; e no entanto, cometeu os "imperdoáveis" erros políticos de ser católico e um orgulhoso antigo aluno da famosa escola de elite de Eton. Jacob Rees-Mogg é um dos favoritos das bases à eventual sucessão a Theresa May como líder do partido e também do país. Quero salientar um recente episódio deste senhor: ao ser entrevistado para a televisão, perguntaram-lhe qual a sua posição em relação aos casamentos entre pessoas do mesmo sexo e relativamente ao tema do aborto. À primeira pergunta respondeu "Sou católico e levo a sério os ensinamentos da Igreja Católica. O Matrimónio é um sacramento e o entendimento sobre o que é o sacramento é dado pela Igreja, não pelo Parlamento. Eu subscrevo o ensinamento da Igreja Católica". À pergunta sobre o aborto, Rees-Mogg retorquiu que era completamente contra e que a vida começa na concepção. Insistiu quem entrevistava se a sua oposição ao aborto incluía todas as circunstâncias, como por exemplo em caso de violação, e o deputado foi claro: "I'm afraid so".

Ruínas do Convento do Carmo, fundado em 1389
por D. Nuno Álvares Pereira, o Santo Condestável
Caiu o Carmo e a Trindade, e até houve católicos a acusar Rees-Mogg de dar argumentos de fé onde se exigia uma abordagem mais racional. Mas eu penso o contrário: não só a fé e a razão são compatíveis e se completam como Jacob foi um belo exemplo de simplicidade e testemunho de fé. Convença-se os crentes com a fé e os não-crentes com os outros argumentos que também há! Mas retirar o argumento religioso do debate é ceder esse lugar aos radicais jacobinos. Foi o que aconteceu em Portugal nos últimos anos: com 85% a 90% da população a assumir-se como católica, a legislação sobre os valores tem sido eficazmente dominada nos últimos 15 anos pelo Bloco de Esquerda, partido que nesse período teve votações na ordem dos 3% a 10%... Por isso, numa altura propícia a fenómenos como Trump, Marinho e Pinto e André Ventura, prefiro que avancem Jacob Rees-Mogg e outros cuja excentricidade não impeça a boa-educação e as ideias enraizadas na boa tradição cristã. Pode ser que com o tempo o Moggmentum se perca e que a Moggmania se vá. Espero que não. Mas venham mais, muitos mais como ele!

Faz falta ao espaço público esta autenticidade livre de calculismos. Desde que o discurso religioso deixou de ser aceite como filtro moral do que está certo e errado, as leis tornaram-se utilitaristas, o "politicamente correcto" tornou-se cativo de certas minorias e transformou-se num código de conduta político-mediático com laivos de ditadura do pensamento único. A liberdade, sem valor, perde-se. Encontramo-nos actualmente nessa perigosa encruzilhada. Os radicais encontram sempre forma de falar e agir. Este é um apelo aos muitos moderados que aí estão, para que não tenham medo nem vergonha de assumir a sua religiosidade e tragam ao debate público a voz moral que foi silenciada e da qual tanto precisamos neste tempo de escolhas difíceis, nomeadamente sobre a vida, a família, o trabalho, a propriedade, a cultura, as fronteiras, e a dívida pública e o planeta que deixamos aos nossos filhos.

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