O vau

Há uns meses que o meu carro de família é um Ford. Gosto dos EUA, tenho os automóveis americanos em boa conta, e a caligrafia no logotipo da Ford transporta-me para tempos mais antigos em que Henry Ford fundou a sua empresa e introduziu novas prácticas industriais que fizeram escola até hoje. E já que ando num Ford, pensei que devia ir à procura do significado deste apelido. Claro que fui deixando essa tarefa para mais tarde, mas o nome saltava-me à vista de vez em quando. Com o mesmo apelido, apareceram-me outros notáveis como o 38º Presidente dos EUA Gerald Ford, os realizadores John Ford e Francis Ford Coppola, o actor Harrison Ford e outros. E com um nome mais composto, o elemento “ford” também aparecia em Robert Redford ou no nosso Marquês de Campo Maior, também conhecido por William Carr, Visconde de Beresford.

Dinsford - "Os 101 Dálmatas"

Vendo os antigos desenhos animados dos 101 Dálmatas, a certa altura a acção passa por uma aldeia fictícia chamada Dinsford, e foi aí que despertei para os “fords” enquanto toponímia. É claro que há vários sítios: Dunsford, Beresford, Bedford, Redford… e outros mais conhecidos como Stratford-upon-Avon (a terra de Shakespeare), e lugares universitários como Stanford (Califórnia, EUA) e Oxford (Inglaterra). Oxford é o vau (ford) onde passavam os bois (ox). Já Cambridge, a universidade britânica que rivaliza com Oxford há mais de 800 anos, não tem vau mas uma ponte (bridge) para atravessar o rio Cam. Ambas têm uma relação profunda com a água, como se vê na corrida anual de barcos a remo que disputam entre si na categoria “Eights”.

Mas o que quer dizer ford? Ford é um vau, que segundo o Lello Universal (Lello & Irmãos) se define da seguinte maneira:

Vau, s. m. (lat. vadu). Sítio de um curso de água onde se pode passar a pé ou a cavalo: “Passar um rio a vau”. Baixio, parcel. Ensejo, oportunidade: “Ter vau para falar a alguém”. “Madeira a vau”, madeira em jangada. Pl. Naút. Traves em que assenta a coberta dos navios. Paus cruzados nas gáveas.

"Le Gué" - Claesz Pietersz Berchem (1650) - Museu do Louvre


Também em Portugal há lugares com este nome, por exemplo a Freguesia do Vau que abrange toda a margem sudoeste da Lagoa de Óbidos, ou a Praia do Vau em Portimão e outra praia com o mesmo nome no Rio Paiva, Concelho de Arouca. E esta semana que passou, no Canhão da Nazaré, um português chamado Hugo Vau conseguiu a proeza de surfar uma onda com cerca de 35 metros de altura, provavelmente batendo o record do seu amigo Garrett McNamara.

Esta investigação não podia esperar, avancei um pouco mais. Se “vau” em latim se diz vadu, será que a capital do Principado do Liechtenstein (Vaduz) tem essa etimologia? Procurei, abri livros e sites, mas não cheguei a qualquer conclusão. O Rio Reno corre ali perto, com um caudal já considerável, e pode ser que venha daí pois é insignificante a dimensão dos outros ribeiros que correm da montanha do castelo em direcção ao Reno. Um pouco mais adiante, depois de delimitar as fronteiras da Suíça com o Liechtenstein e com a Áustria, e após passar a bela Constança (Konstanz) na Alemanha, o Reno volta a entrar na Suíça e encontra um vau em Feuerthalen. Feuer?

Se vau em inglês é ford, também é interessante ver como será noutras línguas e se tem a mesma influência nos nomes das terras. Talvez o castelhano tenha preservado melhor o latim vadu, chamando-lhe “vado”. Quem já estacionou o carro em Espanha certamente já reparou que nos sinais para não estacionar defronte a uma garagem está a explicação “vado permanente”. Aqui, vado não será propriamente um baixio ou banco de areia num rio, mas deverá ser entendido como passagem – o que faz todo o sentido. Em francês diz-se “gué”, em italiano “guado”, em alemão “furt”. Furt? Frankfurt am Main! Francoforte é “o vau dos Francos sobre o rio Meno”. Da mesma forma, em flamengo e holandês temos “voorde” e “foort” a compôr os nomes de Vilvoorde (Bélgica), Amersfoort (Holanda) e tantos outros. Nessas línguas podemos encontrar outras palavras acabadas em -tricht, -trecht, -drecht (do latim traiectum) que indica um trajecto ou passagem em forma de vau. Maastricht é “o vau sobre o rio Mosa” (Meuse em francês, Maas em Holandês), e também Ultrecht e Dordrecht são vaus.

"Fox hunting crossing the ford" - George Wright (1860-1942)

Um pouco mais abaixo, na Alemanha próxima do Luxemburgo, temos a cidade de Tréveris com a sua imponente Porta Nigra e que nos acrescenta mais qualquer coisa a esta história dos vaus. Tréveris (Trier em alemão, Trèves em francês, Augusta Treverorum em latim) era habitada pelos Tréveros, um povo belga que mais tarde foi expulso para Norte pelos Francos. Os Tréveros ajudavam os viajantes a atravessar o Rio Mosela e tinham por deusa Ritona, a deusa celta que protegia... os vaus!

Sobre a simbologia do vau e Ritona, transcrevo o que diz o Dicionário dos Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (Ed. Teorema):

Vau. O vau, em todos os textos célticos, é o lugar obrigatório dos combates singulares e é nos vaus que Cùchulainn mata a maior parte dos guerreiros que os irlandeses enviam contra eles. O vau é, portanto, acima de tudo, um ponto de encontro ou um limite. Muitas localidades da Irlanda são vaus, a começar pela capital actual Dublim, Baile Atha Cliath, a cidade do vau das caniçadas (WINI, 5, passim).

As descobertas arqueológicas trouxeram frequentemente à luz do dia armas afundadas nos vaus, o que leva a provar que o costume irlandês do combate a vau, em celta continental e britânico, se liga ao da passagem e da corrida. Existiu uma deusa Ritona, atestada pela epigrafia da época romana, que chegou a ser considerada como a especialista e padroeira dos combates de vaus. O herói irlandês Cùchulainn está num combate num vau quando a deusa da guerra se vem enrolar na sua perna sob a forma de uma enguia (LOUP, 186).

O vau simboliza o combate por uma passagem difícil, de um mundo para o outro, ou de um estado interior para outro estado. Reúne o simbolismo da água (lugar dos renascimentos) e das margens opostas (lugar das contradições, das travessias, das passagens perigosas).

A propósito de combates em vaus, a primeira memória que me surge é a de Robin dos Bosques a lutar com João Pequeno num vau. “Robin Hood: Prince of Thieves” não é o meu filme preferido sobre o Robin dos Bosques, mas esta cena ficou-me.



E outro duelo de vau que recordo é o de Rambo - First Blood.

Voltando às etimologias, não consta que Roma, Florença ou Verona tenham o elemento “guado” (vau) no nome. Mas é sabido que Roma foi construída num vau do Tibre, Florença num vau do Arno e Verona e Trento em vaus do Rio Ádige. Ou seja, a importância dos vaus é mais que toponímica ou do mais que possa parecer. Há uma história dos vaus que está por contar.

Por fim, bem pudemos ver que a etimologia é como qualquer vau: uma passagem que dá acesso à outra margem, de onde se ganha nova perspectiva sobre as coisas. E também os perigos da etimologia são idênticos aos do vau: se a corrente é forte, não nos livramos de ir parar a sítios que não prevíamos. Mas para quem tem curiosidade sobre o desconhecido, arriscar não é problema.

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